quarta-feira, 4 de outubro de 2017

A VIDA DE SÓCRATES


"...fez descer a filosofia das nuvens e obrigou-a a permanecer entre os homens, a penetrar-lhe domesticamente os lares e a conversar com eles suas normas de viver  e sobre a boa ou má conduta de existência"
Cicero
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                A vida de Sócrates transcorreu em tempos que foram os mais gloriosos mas também os mais difíceis para a cidade que lhe serviu de berço. Dez anos antes de seu nascimento, a Grécia saíra milagrosamente daquele turbilhão que ameaçara desmoronar-lhe e dissipar sua já notável civilização: as guerras persas. Embora Esparta conservasse ainda o prestígio de cidade militar, foi justamente neste período que Atenas se  apresentou ao  cenário nacional como cidade marinheira, aquela Atenas que, antes de então, sempre tinha sido uma cidade rica somente de gênio e ousadia. Era composta de um povo de mercadores e de guerreiros, de marinheiros e artistas inovadores ao extremo e governada pelo grande Péricles, segundo as leis de Sólon. 
                  Nasceu, Sócrates, no ano de 469 a.C, em Alopécia, às margens do Maratona. Seu pai, Sofrônico, era estatuário; a mãe, Fenarete, era parteira. Sócrates nasceu com uma irresistível e exclusiva propensão para a vida de pensador; nascido para observar, conhecer, para refletir, tendo por único objetivo ampliar o conhecimento de si mesmo, Sócrates aproveitou-se do movimento político e da fermentação citadina que Péricles fomentara em Atenas, mas dela participou como douto, quase isolado completamente dos acontecimentos que se verificavam sob seus olhos. Bem mais perto de seu espírito estavam as conversações dos sábios, que de todos os pontos da Grécia afluíam para Atenas. 
                  As primeiras memórias que de Sócrates nos restaram no-lo representam já maduro, tanto em anos como de realizações, quanto pela singularidade de seu modo de viver, quando já se tornara uma figura característica de Atenas. E não nos é difícil imaginá-lo como o viam seus contemporâneos e concidadãos; trajado tal qual um mendigo, quase sempre descalço, rodeado de uma multidão de discípulos, encantados pelo seu profundo verbo. 
                   Família, negócios, cargos públicos, eram coisas que não lhe interessavam. Ao sair da casa paterna, Sócrates, primeiro, desposara Mileta, uma filha de Aristides e, depois, em segundas núpcias, Xantipa. Suas condições econômicas deviam ser bem modestas. Entretanto, Sócrates vivia serenamente naquela miséria, aceitando-a completamente, contentando-se de um ou outro óbolo que lhe davam os discípulos, para recompensá-lo de seus ensinamentos. Quem, no entanto, não se contentava era Xantipa, muito modestamente tratada. De seu nome, a história nos transmitiu, talvez erradamente, não muito boa fama, até muito má, podemos dizer, pois seu nome se tornou símbolo e sinônimo de esposa intratável, briguenta e incompreensiva. 
                 Sócrates, todavia, não fugiu aos deveres impostos pela vida pública. Hoplita - que nos equivale a soldado de infantaria -, como todo cidadão ateniense apto às armas, Sócrates combateu valorosamente nas batalhas de Potideia e anfípole. 
              Os mais eminentes homens da cidade foram seus amigos e discípulos. Alcebíades e Crítias, Anaxágoras, Zenon, Protágoras e Platão seguiram-lhe a orientação. Tamanho era o poder que Sócrates exercia sobre estes, que nenhum de seus discípulos podia afastar-se dele sem sentir-lhe a falta. 
                 Sócrates, que tanto soube atrair a si o coração dos homens, foi um filósofo em tudo e por tudo singular. Não lhe interessavam muito os problemas da matéria ou das coisas, mas sondava o coração dos homens e procurava descobrir a razão por que eles agiam. Da sentença que se lia gravada no frontispício do templo de Apolo, em Delfos, "conhece-te a ti mesmo", Sócrates fez sua divisa e seu programa moral. Não se preocupou em escrever tudo quanto ia dizendo, todos os dias ; ou melhor, Sócrates não deixou uma só palavra escrita. Tudo quanto dele sabemos nos foi transmitido pelos seus discípulos. 
                 Sua sala de aulas não era a Academia, mas sim a rua, e sua vida era multiforme. Os assuntos de seus diálogos eram-lhe inspirados pelas ocasiões fortuitas, que, às vezes, se lhe apresentavam. 
                   Semelhante homem não poderia deixar de ter inimigos. Os filósofos odiavam-no e temiam-no ao mesmo tempo; o cômico Aristófanes reduziu-o a uma caricatura, em sua comédia "A nuvens".
                  Em abril de 399, sob o pórtico do Arconte Re, aquele dos nove Arcontes, a quem competia receber as acusações de crimes contra a religião, foi afixada esta acusação: "Acuso Sócrates como réu de irreligião, porque desconhece os deuses pátrios, e porque, em seus discursos, pratica a arte de desmontar o falso e o justo como verdadeiro e injusto, e essa arte vai injustamente ensinando aos moços." A acusação estava assinada por Miletos, Anitos e Lícon. 
                Na presença de 500 eleatas e de uma multidão de atenienses, Miletos sustentou sua acusação. Sócrates foi condenado à morte. Mas a sentença não podia ser imediatamente executada. Fazia pouco tempo que o navio sagrado, todo enfeitado de guirlandas, partira para Delos, em missão votiva; durante sua viagem, para obter dos deuses aspectos propícios, era proibido derramar sangue e executar sentenças de morte. A vida de Sócrates dependia da sorte do barco. E este regressou trinta dias depois. Os amigos, os discípulos, queriam salvá-lo da morte e prepararam-lhe uma fuga, mas Sócrates, coerente com seu conceito de dever, recusou segui-los. Que era para ele a liberdade física, diante da conquista da liberdade eterna? Que era para ele a morte, já que acreditava na sobrevivência da alma, aquela alma que ele costumava comparar a um manto que se conserva bem apertado de encontro ao corpo?
                  Certa noite, espalhou-se o boato de que o navio fora avistado por alguns romeiros, que o haviam deixado no promotório Súnio, o ponto extremo da Ática. 
            Naquela mesma manhã, Criton foi ao cárcere e, à tarde chegou o navio. Acorreram à cadeia todos os discípulos que se encontravam em Atenas. 
               Chegou o carcereiro, com a cicuta. Sócrates perguntou se podia dispor de alguma gota de veneno, para fazer uma libação aos Deuses, mas o carcereiro lhe respondeu que preparara a dose exata. Sócrates ingeriu a bebida mortal na maior serenidade. Em seu redor, pela última vez, sentaram-se os discípulos, e ainda uma vez, a última, Sócrates falou. O mestre exortou Fédon a não chorar. Sentindo que o tóxico já estava exercendo sua ação, Sócrates deitou-se no leito. Um pobre velho de 80 anos, que resistência poderia oferecer á morte? 
               Os ensinamentos de Sócrates foram consubstanciados para a história do pensamento humano, pelo seu discípulo Platão, o maior filósofo da antiguidade. 
               Antes de Sócrates, os filósofos procuravam conhecer phisis, ou a natureza das coisas exteriores. "Isto é bem, disse Sócrates, "existe, não obstante matéria infinitamente mais digna de meditação dos filósofos do que estas árvores e pedras e mesmo que todas aquelas estrelas; é o espírito do homem. Que é o homem e que poderá tornar-se?"
                  Entrou a sondar a alma humana, desvendando ideias preconcebidas e pondo em dúvida suas convicções. Se os homens se referiam à justiça, ele, calmo, peguntava: "Que é isso? Que significais com as palavras abstratas, por meio das quais explicais tão facilmente os problemas da vida e da morte? Que compreendeis por honra, virtude, moralidade, patriotismo? Que compreendeis por vós mesmos? " Era destas questões morais e filosóficas que Sócrates gostava de tratar. Alguns dos submetidos a este "método socrático", a estes pedidos de definições precisas e esclarecimentos das coisas e análise exata, redarguiam que ele mais perguntava do que respondia, deixando os espíritos ainda mais confusos do que antes.  Todavia, Sócrates legou à Filosofia duas respostas muito precisas a dois dos nossos mais difíceis problemas: - Qual o significado da virtude? e - Qual o melhor governo? 
                 Nenhum assunto poderia ter mais vital importância para os jovens atenienses daquela geração. Os sofistas lhe haviam destruído a primitiva fé nos deuses do Olimpo e no código moral. Um individualismo desintegrador enfraquecera o caráter ateniense, tornando por fim a cidade presa dos espartanos, severamente educados. Dominava a cidade um governo feito com discussões do povo, a leviana escolha, demissão e execução de generais, e a escolha, sem seleção, de lavradores e mercadores por meio da ordem alfabética. Como salvar aquela geração? Sócrates tinha sua própria fé religiosa; acreditava em Deus e esperava, com a humildade habitual, que a morte não o destruía totalmente. São de Sócrates estas palavras: Ateu é quem diz que existe um só Deus! Isto tudo contrariava os filósofos e os mandões da época. Por isso, Sócrates foi obrigado a tomar cicuta. 
Nicéas Romeo Zanchett 

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